segunda-feira, 19 de setembro de 2022

DE VOLTA AO JOGO

 

frame de O Carteiro e o Poeta



DE VOLTA AO JOGO


Voltar a escrever é como voltar a pedalar depois dos quarenta e cinco anos. Você sente necessidade, física até. Sabe que precisa, que vai te fazer bem, conhece todos os benefícios. Sabe quais passos devem ser dados para daqui a seis, sete meses, tudo voltar a ser como nunca deveria ter deixado de ser há seis, sete anos. Você calça o tênis. Você abre o notebook. Você compra a camisa colada no corpo com tecido tecnológico que absorve o suor. Você abre a garrafa de Johnnie. Você compra a bike mais leve do mercado. Você acende o baseado. Você compra os óculos espelhados. Você abre todos os sites com dicionários de sinônimos disponíveis. Você entra num grupo que faz pedais aos finais de semana do Leme ao Pontal. Você procura no Spotify uma playlist de artistas indie. Você passa mal tentando subir o Alto da Boa Vista. Você fica irritado com o vizinho de cima fazendo obra no sábado e o culpa pelo bloqueio criativo. Você é levado para o pronto-socorro e submetido a um eletrocardiograma que não indica nada de errado, mas você sabe que tem algo de errado, aquilo não é mais pra você. Você fica puto da vida e escreve um conto péssimo no qual seu vizinho é esfaqueado setenta e duas vezes e cai do nono andar dentro do caminhão de lixo, fica com mais raiva ainda e deleta o arquivo. Você jura que nunca mais vai pedalar. Você jura que nunca mais vai escrever. Você encontra no pôquer a diversão perfeita, afinal no pôquer tudo é permitido, até olhar a mão do parceiro de jogo que der aquele vacilo, você pode beber um Johnnie enquanto joga pôquer, até fumar um maldito charuto você pode no pôquer, cacete! Você resolve que vai é compor samba, escrever não dá dinheiro mesmo, pagode deixa qualquer um rico e você escreve pra caralho, vai ser capaz de escrever pagodes sensíveis e não vai ter que correr atrás de editoras, basta pagar duas, três horas num desses estúdios que existem por aí e subir a música no Spotify. Pôquer dá menos trabalho e você também pratica sentado. Compor é mais divertido e você também faz em casa. Pôquer é esporte? Compositor é profissão? Você se dá conta de que pode praticar ciclismo e pôquer simultaneamente. Não exatamente ao mesmo tempo, por óbvio, mas praticar pôquer não afasta o ciclismo. Você lembra que existem grandes sambistas que são escritores, grandes escritores compositores: céus, Chico Buarque tem uns vinte e cinco Jabutis! Você recorda que pagou trinta e cinco mil reais na bike mais leve já fabricada no planeta Terra. Você sabe que seu note vai acordar no dia seguinte com aquele olhar sacana te chamando pra dedilhá-lo. Você precisa melhorar o fôlego, um corpo forte pode ajudar a melhorar o desempenho sexual, fotos com o tórax sarado no Instagram vão render uns matches, além dos benefícios para a saúde, no fim, você vai comer mais gente e isso é muito bom. Você vai voltar a publicar e isso desperta o interesse de um certo tipo de mulher que é exatamente o tipo de mulher que desperta o seu interesse, pode descolar um trocado, não muito, mas isso não importa, você pode ter o livro resenhado na Folha, no Globo, isso massageia o seu ego e isso desperta o interesse de um certo tipo de mulher que é exatamente o tipo de mulher que desperta o seu interesse, no fim, você vai comer mais gente e isso é muito bom. Você decide que vai acordar amanhã e voltar a pedalar, com calma, com paciência, você vai conseguir. Você vai voltar a escrever e como é escritor não vai esperar amanhecer porque a garrafa de Johnnie já está aberta mesmo e está tocando New York no Spotify, a voz do Lou Reed batendo forte no seu ouvido, hold on, filho da puta, hold on, é madrugada e o canalha do 903 não está martelando a esta hora, você está de volta ao jogo, sua cabeça começa a fervilhar, você digitando palavra atrás de palavra, na sintaxe perfeita, ideias jorrando por todos os cantos do seu cérebro genial, você está de volta, porra! Acende um baseado, traga fundo e se pergunta: será que dá pra ser ciclista e escritor ao mesmo tempo? 

 

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Calmaria



A perturbação ficou presa do lado de fora. Tocou a campainha algumas vezes, não atenderam. Enviou mensagens suplicando para entrar, mas os celulares estavam desligados. Impaciente, ladeou o terreno à procura de alguma brecha no muro, alguma parte em que fosse possível pular, invadir a casa, fazer o que faz de melhor: perturbar. 

Ouviu ao longe as gargalhadas enquanto cozinhavam, ouviu a voz roufenha do Tom Waits que partia de uma minúscula caixa de som posta sobre a bancada da cozinha, ouviu os gritos de gozo enquanto abandonavam o peixe no fogo e trepavam sobre a mesa de jantar, ouviu o suspiro suave do ronco da mulher quando a noite avançou leve sem sua presença no lado de dentro da casa.


Pensou que talvez fosse possível chamar sua atenção se pegasse um carro, parasse em frente ao portão e acionasse a buzina incessantemente até que as luzes se acendessem e, enfim, permitissem sua entrada. Mas a perturbação não possui mãos, não possui carro, não possui carteira de habilitação. A perturbação possui pessoas e como não havia ninguém por perto seus planos seguiam frustrados.

 

As estrelas corriam sorridentes de leste para oeste sob o olhar zeloso da lua deixando-a inquieta. O tempo que não para em função de nossas inquietudes avançava sobre sua cabeça. Havia, ainda, muito trabalho a ser feito naquela noite e tudo estava em suspenso em razão de um portão fechado, em razão de um maldito celular desligado. Já deveria ter providenciado sua habilitação há anos, mas a perturbação não possui mãos, não possui olhos, não possui corpo. A perturbação possui pessoas e não havia um filho da puta passando pela rua naquele momento. 


Uma mancha no seu currículo. Levaria uma advertência ao chegar no escritório por deixar de cumprir a simples tarefa de perturbar um casal, o que desencadeava uma sequencia angustiante de não perturbações em outros logradouros. Seria rápido, quem sabe, indolor? Uma breve perturbada e o casal poderia voltar aos lençóis, que o coito pós briga pode ser até mais gostoso. Mas que muro alto! Sussurrava entre dentes. 


Sentou-se ao meio fio e procurou o pulso onde deveria haver um relógio para conferir a hora, mas ela não possui pulso. Nem mesmo aquelas estrelas estavam sobre sua cabeça, já haviam se recolhido, cansadas de correr de um lado para o outro. A lua acenava de longe indicando que o sol estava a caminho. 


Pensou que junto com o sol chegariam pessoas. Empregados, carteiros, transeuntes. O caminhão de lixo. A perturbação não possui habilitação, mas ela possui caminhões de lixo. Uma viatura patrulhando, a perturbação possui sirenes. Um helicóptero. Tudo de que precisava naquele momento era um simples helicóptero para pousar do lado de dentro daquele muro alto, manter o motor ligado, as hélices girando, cortando aquele ar não perturbado, gerando uma convulsão no ambiente, as folhas se espalhando pelo terreno, o cachorro latindo, as roupas voando, as cadeiras deslizando até a piscina, as janelas batendo, o trabalho completado com fúria. A perturbação estava furiosa, ela adoraria transformar aquela casa em um inferno, instalar o caos, provocar convulsões, crimes de morte. No início era apenas uma breve aporrinhação, não mais. 


A perturbação estava em guerra. O trabalho acumulado, a frustração de ser impedida por um portão, a perturbação não possui mãos para esmurrar o portão até que ele caia sobre a cabeça do cachorro, não possui mãos para empunhar um machado e picar o portão, não possui mãos para empunhar uma marreta e quebrar o muro, não possui mãos para empunhar uma britadeira e picar o muro em pedaços provocando um barulho insuportável e um prejuízo perturbador. Foi arrebatada por uma vontade irresistível de destruir aquela casa, destruir aquele casal, destruir aquele bairro inteiro, explodir, implodir, fazer desaparecer aquele lugar, aquela noite, aquela história. 


O sol começou a se espreguiçar espalhando cor pela vizinhança. Era a confirmação de sua incompetência, toda uma madrugada e ela fora incapaz de perturbar. É o que ela faz, sua única função: perturbar. 


Sons pareciam vir do outro lado do muro, o cachorro farejando pelo jardim. Os pássaros encarcerados no viveiro ressoavam alegres como se fossem a Sinfônica de Berlim. A perturbação odeia alegria e tudo recendia alegria naquele endereço. 


Ouviu vozes. O casal se divertiu, cozinhou, trepou, dormiu e acordou alegre. A alegria parecia cada vez mais intensa. Que merda é essa? O casal sorria e seu sorriso ecoava. Agora gargalhavam, não se tratava mais de alegria. Era felicidade o que jorrava da casa. Felicidade. Que merda é essa? Por que estava ali? Por que diabos a haviam escalado para aquele trabalho de perturbar um casal de portões intransponíveis, muros impenetráveis? 


Sorrisos se espalhavam mais e mais e repentinamente deram lugar a vozes vibrantes; as vozes de um casal feliz. Mas sobre o que conversavam? Talvez ouvir suas palavras doces, conhecer seu afeto ao menos pudesse justificar o insucesso da perturbação. Talvez fosse justo não perturbá-los naquela noite. 


Encostou o ouvido no portão, parou de respirar para o fluxo de ar não atrapalhar sua audição, apurou mais e mais sua atenção. 


“Estamos em agosto, ele deve nascer em abril. Não, maio. Ele deve nascer em maio. Não acredito que vamos ter um filho!”, disse o Homem. 


A perturbação afastou-se e satisfeita voltou voando para casa, que ela não possui pernas. A perturbação possui bebês.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Maremoto



Tenho a impressão de que o homem só compreende os quarenta anos quando está à beira dos cinquenta. Porque tudo é (ou parece) muito mais complexo do que era antes, como numa segunda adolescência.

Nessa zona cinzenta, atingimos a maturidade profissional e começamos a deixar de lado a fase de sonhos. Nossos filhos começam a se aproximar da vida adulta (no meu caso, já há algum tempo), nossos relacionamentos se tornam mais reais, menos fantasiosos e os problemas se tornam maiores, assim como as conquistas mais relevantes.

Aqui, via de regra, as perdas inegociáveis começam a acontecer. É para isso que você, que passeia pelos gloriosos vinte anos, precisa se preparar.

Esqueça o filtro solar e o câncer de pele, o primeiro é importante e o segundo fatal, mas não deve ser essa a sua maior preocupação. Esqueça que suas veias se entopem de gordura a cada mordida no hambúrguer, que seu fígado ganha peso a cada long neck, que sua barriga cresce a cada ano, que sua energia diminui a cada aniversário, que sua aposentadoria se torna mais distante a cada novo governo, que seu relacionamento se torna mais enfadonho a cada briga, que suas férias se tornam menores a cada promoção, que seu ciclo de amizade se torna menor a cada verão, que as contas crescem a cada novo filho, que você precisa apender um novo idioma, que você precisa reservar vinte por cento - no mínimo dez – de sua renda em um investimento seguro, que você precisa de plano de saúde, que você não tem mais habilidade para jogar futebol, que os cabelos começaram a despencar, que a barba fica branca, que ninguém te dá muita atenção, que o chefe não te trata com humanidade, que você não conseguiu comprar a casa própria, que sua família não é tão família quanto você pensava, que o mundo não te aceita como você é. Nada disso será importante quando você perder sua mãe, quando sua avó perder a capacidade de se levantar sem a sua ajuda, quando seu pai apresentar os primeiros sinais de Alzheimer.

Não é simples deixar de sentir o cheiro de alguém com quem você conviveu por anos, da noite para o dia, porque simplesmente essa pessoa deixou de existir e nada, nem ninguém, vai conseguir reproduzir a sensação deliciosa de recostar no seu peito e apenas viver.

Uma onda de arrependimentos sempre virá e, como todo movimento das marés, se retrairá e tornará a molhar seus pés, num indo e vindo infinito. Lembranças boas também, talvez com maior intensidade. Não importa, a aflição provocada será a mesma: uma sensação cruel de irreversibilidade.

Logo você sentirá que passou menos tempo do que deveria com seus pais, que gastou mais tempo do que deveria em discussões frívolas. Logo você vai perceber que trocar uma noitada por uma sessão de cinema com sua avó pode ser a diferença entre essa onda tocar ou não os seus pés.

Cuidar da saúde é importante, se alimentar bem e passar o maldito filtro solar pode ser vital para chegar saudável aos quarenta anos, o tempo em que seu casamento alcançará o ápice ou será extinto, você será demitido ou será promovido a CEO, você se tornará sogro de um adolescente que idolatrará alguma banda da qual você jamais gostará, sua vista começará a te deixar na mão, tudo simples e comum como deve ser. De certa forma, a sociedade nos prepara para isso, com seus tratamentos infalíveis e seus compêndios de autoajuda.

Ninguém te avisa, porém, que o abraço do pai será extinto e que isso provocará uma sensação de abandono que só o abraço do pai poderia corrigir. Ele não estará lá, eu avisei.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Completamente apaixonado



A paixão é o problema. É fogo morro acima. Esqueça suas convicções, suas ideias predefinidas, suas orientações educacionais, se tiver de culpar alguém, culpe a paixão.

Ela te fez perder a cabeça e xingar o amigo de infância que votou no outro, fez rebater a ofensa com apelo mais gravoso. Ela fez os canalhas cuspirem na pessoa que não conheciam porque vestiam uma camisa diferente, porque torciam por um time diferente. Ela provocou esse furor que hoje transborda das casas e leva todo mundo para o bueiro.

Não é menor que a razão, nem pior. Não é essa a questão. Desmedida, a razão torna as coisas chatas, a paixão torna tudo cego. Desmedidas, as duas são quase sempre indesejáveis.

Em geral, a razão é freio e a paixão é acelerador. Sendo assim, culpe a paixão pelo acidente e se descobrir que estava sem freio, não culpe a si mesmo por deixar de verificar as pastilhas antes da viagem.

Culpe a paixão pela inconsequência do seu amor, pela amante, pelas suas parafilias, “é tudo paixão que virou doença”, grite ao ser preso com uma faca ensanguentada na mão.

Paixão morte. O marido policial descobriu que a mulher o traía com o capitão da corporação, cercou o carro que saía do motel. Trocaram tiros, balas cheias de paixão que acertaram seus corpos. Paixão rasgando a carne, rompendo vasos sanguíneos e perfurando órgãos vitais. Paixão que abre covas dia a dia. Que mata o coração do marido traído e alimenta o coração do poeta resignado.

Paixão vazio egoísta. O casamento acabou fazia anos, antes mesmo de começar. O homem amava a mulher, mas era apaixonado pelo trabalho. Culpe a paixão. Não foram as noites de serão, nem o silêncio recorrente na mesa de jantar. O sexo escasso, o desprezo crescente e a falta de atenção que, de tanta, chamou a atenção dos familiares. A culpa é da paixão que ele nutria desde a infância e que se tornou profissão, mas não menos paixão.

Paixão estupidez. A paixão que transformou a religião em algo mais importante que a fé, a doutrina mais importante que a ação. Culpe a paixão pelas pedras que atirou. As mãos do apaixonado que apedrejou a adúltera de Cristo e a suburbana macumbeira. Culpe a paixão com uma explicação bem arrazoada.

Sua cabeça perde o controle, tudo agora está à flor da pele. Anoesis. Puro estado de sensações e emoções, liberto da razão castradora você pode fazer tudo, a culpa não está em você.

Vá em busca de novos desafios, sem limites. Embrenhado na mata, perdido, siga em frente, viaje para longe e quando seus pés estiverem sangrando terá sido a paixão o impulso para o desatino.


Culpe a paixão até o fim - e mesmo que não haja um fim. Que a culpa dela é a desculpa que te resta, é a bengala que sobrou pra te ajudar a caminhar para trás.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Eu sou o pombo que caga na sua estátua

A polêmica foto de gosto duvidoso. Aliás, de mau gosto

A morte tem sido a maior aliada dos autores. Atualmente, todo escritor que morre tem recebido tratamento de lenda antes mesmo de pisar o inferno. O caso mais recente foi de Umberto Eco, após sua recente passagem, houve quem se descobrisse fã do escritor sem nunca ter sabido.

Nada contra homenagens póstumas a grandes vultos culturais. O que me incomoda é que de um tempo pra cá esses nomes tem se tornado mais importantes mortos, que vivos. Como se apenas após o óbito fossem dignos de admiração.

Deve ser algum fenômeno da internet que não sou capaz de compreender, ou analisar. Mas cinco anos atrás escrevi um conto que ironizava o assunto. Chama-se ‘Delírios de grandeza do escritor suicida’ e trata de um escritor medíocre que, cansado do anonimato, planeja um suicídio lírico, poético, a fim de alavancar a carreira.

O conto foi fulminado pela Marina Colasanti, que achou meio mórbido e disse que era tudo mentira. Tentei argumentar, mas não fui capaz de convencê-la de que aquela história era mais real do que podíamos julgar. Errei no suicídio, parece que saiu de moda entre os escritores.

A morte, porém, como escrito na primeira linha, tornou-se mesmo uma catapulta involuntária para a fama.

Perturbado por essa certeza e na tentativa de carimbar minhas figurinhas favoritas, após a morte de Eco, tratei de correr ao Facebook e proclamar meu amor aos meus dois autores favoritos, que já estão velhinhos (espero que vivam muitos anos). Uma ode cibernética, coisa dos nossos tempos: gravar uma poesia em forma de elogio na nuvem.

Desconfio, no entanto, que o maior elogio que se pode fazer a Eco, Clarice, Bowie, ou qualquer grande nome da arte que esteja vivo, ou morto, seja consumir sua obra.

Mais do que postar frases retiradas de livros, ou criar cartões com poemas desconexos de origem duvidosa, ou batizar ruas (cidades, curvas), ou levantar bustos e estátuas, manter viva a obra comprando seus livros, tocando sua música, reprisando seus vídeos, relançando seus discos é a forma mais bela de tributo.

Chegamos, então, à semana em que se espalhou feito praga a foto de uma moça de biquine quase sentada sobre os ombros da estátua de Carlos Drummond de Andrade, com a genitália (devidamente coberta) repousada sobre a nuca do poeta e na qual me tornei vítima de uma porrada em rede social.

Ao comentar na time line de um amigo que achava a foto engraçada, recebi um soco virtual em forma de “você achou engraçado porque também é um sem cultura também”. Quase fui à lona. No trajeto tive tempo de pensar em tudo o que escrevi até aqui e mais.

No Rio de Janeiro ouvimos falar na estátua do poeta ao menos duas vezes ao ano desde a sua inauguração: quando larápios roubam os aros dos óculos, ou exibidos picham o monumento. Guardamos essa estátua com um zelo que não consigo enxergar sobre a obra do autor. Não gosto de ver a cidade maltratada, mas esse texto não está preocupado com esse assunto (importante, sem dúvida).

Precisamos pensar sobre a reverência prestada aos objetos representativos. Túmulos que visitamos, bustos que levantamos. Eles têm sua importância, naturalmente. Mas não são essenciais. O essencial de Drummond está impresso e foi escrito por ele. O resto é enfeite, como o porta-retratos que não é a pessoa que amamos, mas está ali só pra lembrar que ela existiu (como se fosse necessário).

Talvez, se soubéssemos disso, teríamos mais interesse em conhecer a obra de nossos escritores (de preferência, em vida), muitos abandonados, desconhecidos; mais merecedores de respeito que meras estátuas, menos respeitados que a merda do pombo que suja diariamente o ombro do Drummond.


Comentários a mais:

1 -Drummond escreveu o seguinte poema sobre o corpo feminino:

No corpo feminino, esse retiro 
- a doce bunda - é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
Pois tanto mais a apalpo quanto a miro.

Que tanto mais a quero, se me firo
Em unhas protestantes, a respiro
A brisa dos planetas, no seu giro
Lento, violento... Então, se ponho tiro

A mão em concha - a mão, sábio papiro,
Iluminando o gozo, qual lampiro.
Ou se, dessedentado, já me estiro,

Me penso, me restauro, me confiro,
O sentimento da morte ei que adquiro:
De rola, a bunda torna-se vampiro.

2 – De Umberto Eco, só li Confissões de um jovem escritor, não gostei muito. De vez em quando abro em uma página aleatória, folheio, bebo algum conselho que esqueço em seguida e só volto a reabrir o livro meses depois.

3 – A ideia da frase “A morte tem sido a maior aliada dos autores” já foi destrinchada por mim antes. Não por acaso está no conto Delírios de Grandeza do Escritor Suicída, escrito em 2011 e publicado em 2012 no blog Estronho e Esquésito, que pode ser lido aqui.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Sobre pais, filhos, livros e carreira.



. O mês de julho sempre foi festejado na família. Comemorávamos meu aniversário, junto com o do meu pai e o da minha avó. Numa dessas coincidências incríveis nasci no mesmo dia do mesmo mês que o meu pai e que a mãe dele.

. Meu filho lentamente se torna um astro do rock. Pode parecer exagero, deve ser mesmo exagero, coisa de pai. No último final de semana subiu ao palco consagrado do Beco das Garrafas para se apresentar com sua banda.

. Meu pai passou a ler depois de velho. Torci o nariz quando mostrou os livros do Sidney Sheldon. Badu era assim, quando gostava de algo, caía matando. Comprou cerca de dez livros do autor em menos de seis meses. Não sei ao certo quantos foram lidos.


Eu e Badu em visita a minha avó nas comemorações de 1989.

. Meu pai faleceu em 2013. Ano passado não comemorei meu aniversário, não faz sentido cantar parabéns sem o velho ao meu lado soprando as velas.

. Depois do show da banda do Guilherme, que não pude assistir por estar na Flip, conversamos sobre carreira. Precisa ser trabalhada com paciência. Meu filho estuda música a todo o momento, desde os seis anos. Não estou falando de oito, ou dez horas por dia. Não existe um só minuto em que ele não esteja musicando.

. Julho tornou-se um mês triste.

Guilherme e sua primeira guitarra.

. O primeiro romance que tentei escrever contava oitenta e três páginas quando o meu velho PC deu pau. Levei onze anos para voltar a produzir.

. Além de usar camisinha e tentar se manter longe de drogas ilícitas, aconselhei meu guri a nunca desistir da carreira. O início vai ser uma merda, o que é bom para dar liga. Brindamos com uísque doze anos.

. 
Meu pai morreu antes de ver publicado meu primeiro livro. Gostaria de saber sua opinião. Ainda que não fosse um perito literário, era sincero o suficiente para dizer que não gostou. Se fosse o caso, aconselharia o filho caçula a voltar para os tribunais.

Estreei na Flip participando de mesa sobre 
literatura policial na casa Off Flip das Letras.

. Não pretendo usar mais terno e gravata. Abro exceções para cerimônias de entregas de prêmios com traje obrigatório porque ainda sou um autor novato que sonha – e muito – em ser premiado.

. Quando era criança, fomos a uma feira de livros promovida pela escola primária em que estudávamos. Quis comprar um livro que contava a história de um cachorro abandonado. Meu irmão mais velho – que tomava conta do dinheiro – não deixou.

. Participei de uma mesa de debates em um evento paralelo à Flip 2015. Falamos sobre literatura policial, a casa ficou cheia e a conversa foi divertida. No dia seguinte, ainda embriagado pelo ego, tive de lidar com as diversas notícias sobre o show do meu filho em sites de celebridades.

Valéria Martins (Oasys Cultural) mediando a conversa com 
Luiz Biajoni, à minha esquerda, e Raphael Montes, à minha direita.

. Meu pai pensou em financiar minha carreira, quando decidi voltar a escrever. Mandou-me procurar editoras que publicassem por encomenda. Faria o que fosse necessário para ver meus livros nas prateleiras das livrarias.

. Comprei uma guitarra Gibson para o Guilherme com parte da herança que me coube.

. Estava enfiado no meio do mato, quando a Folha de São Paulo publicou uma crítica favorável do Santiago Nazarian ao meu primeiro romance. Ao voltar para a cidade, dois dias depois, li mais mensagens de felicitação nas minhas contas em redes sociais do que já havia recebido em todos os anos por ocasião de meu aniversário.

Guilherme (camisa branca) e banda no Beco das Garrafas:
o cabelo na cara ele herdou do Slash.

. Guilherme, meu filho, passou um ano estudando a música Wave para a prova prática do conservatório. 365 dias sem interrupção. Aprendeu a tocá-la em todos os tons, ritmos. Aprendeu a música de trás pra frente.

. Culpo meu irmão por eu ter quatorze gatos, dois cavalos e um cachorro. Nunca mais encontrei o livro do cachorro abandonado pra vender. Minha mulher, por seu turno, nunca mais conseguiu ouvir Wave, culpa do conservatório.

. Trocaria minha carreira literária por um assento na primeira fila do primeiro show que meu filho fizesse (ou fizer) no Carnegie Hall, ou no Olympia, ou no RMCH, ou no CBGB, ou em Montreux, ou no Rock in Rio, ou no Monsters of Rock, ou no  Smithsonian, ou no Lollapalooza, ou no Download Festival, ou no Glastonbury, ou no Rock in Park, ou no Wacken, etc.

. Gosto de frequentar eventos literários (com bebidas liberadas, adoro). A casa Rocco distribuiu uma das melhores cervejas artesanais produzidas no Brasil em seu coquetel na Flip 2015, que acontecia no exato momento em que Guilherme subia no palco em Copacabana para o show mais importante de sua recém-nascida carreira. Um brinde.

Eu e o velho em nosso último aniversário juntos.

. Penso que meu pai achava triste o mês de julho, depois que minha avó morreu. Nunca conversamos sobre isso. Continuamos soprando velas em silêncio.

. Quando a professora nos chamou para conversar sobre o Guilherme, ficamos preocupados. Quando ela disse, porém, que era um ótimo menino e que seu ouvido estava aberto para música, ficamos felizes. Anos mais tarde, voltamos a nos preocupar quando ele disse que quer ser músico.

. Guilherme aprendeu a tocar flauta com seis anos, talvez sete.

. Meu filho nunca nos deu trabalho, mas prometeu que se fizer muito sucesso vai nos dar uma pick up 4x4 nova para eu e sua mãe sumirmos no meio do mato. 

. Eu quero netos.

. Doei os livros do Sidney Sheldon que herdei do meu pai.



Trilha sonora: